segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Alessandro Atanes, para o PortoGente

Muitos dos personagens de Roberto Bolaño são escritores. Logo, como era de se esperar, costumam ler outros escritores, sejam clássicos, desconhecidos, contemporâneos ou simplesmente colegas das tertúlias literárias.

Em seus livros já traduzidos no Brasil (Noturno do Chile, Putas assassinas, Os detetives selvagens, Pista de gelo e Amuleto), abundam as leituras de autores de língua espanhola, e aparecem também, aqui e ali, referências a escritores de língua inglesa.

Apesar de toda sua habilidade em dar vida ao mundo literário (seus escritores comem, bebem, dançam, tomam café com leite, trepam e mentem como qualquer outro ser humano), algo me intrigava, e não me refiro ao talento, que é de sobra: “Poxa – pensava – será que Bolaño não conhecia nada de literatura brasileira para tomá-la como tema?”.

Mas há indícios de que Bolaño, morto em 2003, aos 50 anos, conhecia pelo menos alguma coisa da história literária e do desenvolvimento do pensamento brasileiro no século XX. Estas pistas estão justamente em um dos seus livros ainda não publicados por aqui, La literatura nazi en América, livro de 1996 que trouxe reconhecimento ao autor, no qual traça perfis biográficos de escritores fictícios. Dois deles são brasileiros: Luiz Fontaine da Souza e Amado Couto.


I
Fontaine nasce em 1900 no Rio de Janeiro, então capital da República, e morre na mesma cidade em 1977. Muito jovem ainda, publica três volumosos livros sobre filósofos franceses (Refutação a Voltaire, 1921, 640 páginas; Refutação da Diderot, 1925, 530 páginas e Refutação a D’Alembert, 1927, 590 páginas), obras que conquistam os pensadores católicos do país. E aí Bolaño acerta em cheio em nossa história intelectual dos anos 20 e 30 do século XX, quando se fortalecia no país a influência católica entre os intelectuais. Sergio Miceli conta que estes são os anos da fundação das revistas católicas A Ordem (1921) e Festa (1927), da formação do Centro Dom Vital (1922), da Ação Universitária Católica (1929), da inauguração do Corcovado, do Instituto Católico de Estudos Superiores (de onde surgiria a PUC – Pontifícia Universidade Católica), além de editoras ligadas a estas instituições, como a Agir, enfim, o presumido público de Fontaine não era pequeno.

Após mais duas refutações de mais de 600 páginas cada uma (a Montesquieu em 1930 e a Rousseau em 1932), o autor fictício publica em 1937 (Hitler já estava no poder na Alemanha desde 1933) A questão judaica na Europa seguida de um Memorando sobre a Questão Brasileira (552 páginas), onde, conforme o perfil, “expõe os perigos que espreitam o Brasil (desordem, promiscuidade, criminalidade) se a mestiçagem se generaliza”.

Aqui, por meio da biografia inventada, Bolaño toca o aspecto das teses raciais e de depuramento da raça brasileira que estavam em voga no Brasil desde as últimas décadas do século XIX, quando a mão de obra negra, ex-escrava, começa a ser substituída por trabalhadores brancos nas fazendas. Em 1943, Fontaine ainda publica um artigo em um jornal do Rio em que se opunha à entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.


II
Amado Couto, o outro autor brasileiro inventado por Bolaño, nasce em Juiz de Fora em 1948 e morre em Paris em 1989. Após ter a publicação de um livro de contos negada por diversas editoras, decide fazer parte de um dos esquadrões da morte da ditadura iniciada em 1964, atividade que lhe fornece ideias sobre o que a literatura brasileira precisava naquele momento, entre as quais sequestrar e talvez matar o escritor Rubem Fonseca, que na primeira década do governo militar despontava com uma nova narrativa, violenta e seca, das questões nacionais.


Mais tarde Couto publicaria o romance policial Nada a dizer, por meio da coleção Pistola Negra, “que editava policiais norte-americanos, franceses e brasileiros, mais brasileiros ultimamente porque escasseava o dinheiro para pagar royalties”. Não é que Bolaño conhecia nosso mercado editorial?


Epílogo
Apesar de tratar de escritores fictícios, La literatura nazi en América Latina toca numa chaga da história intelectual da América do Sul, América Central, México e Estados Unidos que, cada um a sua maneira, tiveram intelectuais que apoiaram abertamente a regimes autoritários, desde os nazistas e fascistas até as ditaduras mais recentes do Cone Sul. Um caso emblemático é o que fecha o livro, o perfil de Carlos Ramírez Hoffman, o Infame, poeta e piloto da aeronáutica chilena que comete atrocidades contra outros artistas (principalmente mulheres), registra suas matanças em fotografias e as expõe como se fosse arte de vanguarda (a história de Hoffman, com o personagem recebendo outro nome, é desenvolvida na forma de romance em Estrella Distante, também ainda não vertido ao português).

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