domingo, 31 de agosto de 2008

Por Alexandre Bonafim

No prefácio do livro “De sombras e vilas”, tem razão Paulo Henriques Brito ao afirmar que o poeta estreante, Cláudio Neves, já se revela maduro e senhor dos meios da expressão poética. Cláudio guia, com leveza, a métrica, em variadas formas, desde a redondilha ao decassílabo, sem perder o fôlego ou a pungência. Também conforme Henriques Brito, no livro podemos entrever dois tons: um elevado e outro mais prosaico, principalmente na série “De sombras e Vilas”. Nesse aspecto, eu que não sou um grande admirador da poesia de tom prosaico (que nos autores de pouca verve é apenas prosa e não poesia), percebo que, nos poemas de temática cotidiana, Cláudio faz aflorar o absurdo e o caos, salvando, assim, sua escrita da mera prosa banalizada. Assim, a morte aflora, em meio ao cotidiano das vilas, revelando a caducidade da vida humana:

INHAÚMA
Fernando conhece Inhaúma,
salta jazigo em jazigo.
Numa há uma fenda,
noutro um anjo sem nariz,
noutro uma foto oval
de mil novecentos e trinta.
Ao lado da laje frouxa:
ripas, coroas crestadas,
pedaços de terno, fitas
exumadas, inumanas,
que só Fernando examina.
Que só Fernando não teme,
que Fernando não hesita,
sabe o caminho até Hilda.
Fernando me hipnotiza.
Quando penso em minha morte,
vejo Fernando, menino,
saltando sobre os meus ossos,
fazendo-a menor,
menos minha.

A última estrofe, de grande beleza, arrebata justamente pela antítese entre infância e morte, uma infância a perdoar a nossa finitude, a trazer alento ante a presença dos limites inexoráveis de nossa condição de humanos.

Na série “De sombra e vilas”, ganha vulto inúmeras personagens, como o próprio Fernando desse poema, em um verdadeiro desfile de afetos tragados pela sombra, pela morte, pelo nada. E, a partir dessa dimensão metafísica, Neves consegue imprimir impulso poético à sua escrita, livrando-a do mero prosaísmo.

Sabemos que, na poesia brasileira, há uma verdadeira corrente, de grande força, contrária ao tom sublime e maior, o que revela um preconceito descabido, visto que, conforme Denílson Lopes em seu belo livro A delicadeza, o sublime é uma via de acesso ao sagrado e ao transcendente. Nesse sentido, o sublime tem uma grande importância ética, pois resgata, no homem reificado de nossos dias, sua humanidade fecunda, possibilitando-lhe, simplesmente, a beleza. Com efeito, quanto mais elevado e sublime o tom de Cláudio Neves, mais sua poesia ganha densidade, agudeza, força, pujança; mais o poeta revela textos de perfeito acabamento formal e acertada escolha temática, elaborando imagens de encanto ímpar e arrebatador, como podemos perceber nessa pequena obra prima:

A morte ensina à sombra
como habitar as coisas,
seduzi-las,
e a sombra à morte
como, tocando-as, consumi-las.
Que a morte, como sangue,
na sombra circula,
e a sombra abraça a morte,
e a anula.

A sombra, assim como o sono, pode nos permitir a nós, eternos ignorantes ante a derradeira viagem fatal de nosso destino, como se conforma o morrer, como se dá esse grande enigma, essa noite escura de nossa alma. A sombra permite ao poeta sondar o impensável, o interdito, o mistério. E ao sondar o indizível, sua palavra ganha força lírica, eloqüência de refinado canto.

Outra imagem de grande recorrência no livro é a do gato. Assim como as sombras, os gatos são também uma presença do enigma, do segredo maior que a todo instante nos circunda e nos fecunda. Em belíssimos poemas, a palavra parece levitar na forma pura, na esmaecente leveza dos felinos, presença fatal do real a suscitar em nós um selvagem assombro:

 
O único todo
de sombra compacta.
E todo ele
é movimento
e sempre anfíbia
sua passagem.
Como uma idéia
por entre as coisas,
como uma coisa
entre palavras.
Sequer despreza
como outros gatos:
ao gato negro
basta o contraste
com qualquer sombra de realidade.
Mas, quando estaca,
(a pata erguida,
inconcluso o passo)
fagulha apenas
seu olho incriado.
Como uma idéia
por entre as coisas,
como uma coisa
entre palavras,
como uma morte
dentro do Nada.

No livro de Neves, conforme as metáforas do próprio autor, há no interior da palavra “guerras suspensas”, “incêndios antigos”. E isso se dá porque, como um poeta digno de nome, Cláudio sabe que a lírica, fiel à própria natureza da vida, é embate, luta entre forças em perene antagonismo; sabe que dessa permanente refrega (encanto e horror de nossa própria natureza humana) nasce a verdadeira palavra poética, a palavra que não se nega à luta de penetrar o real e revelar-lhe sua densidade mais intensa, mais aguda, mais atroz. Corajoso (como deve ser todo poeta), Neves se permite a verdade de nosso ser, mesmo que, nessa empreitada, a dissolução de tudo o que existe seja o delta fatal dessa pesquisa lírica. Todavia, também o poeta compreende que, ao travar esse combate com a vida, ela também se torna cântico, poesia, conforme o poeta nos revela nesse belíssimo soneto (um dos pontos altos do livro)

ORFEU
A corda que vibra estremece a floresta,
paralisa a lua, agita os ciprestes.
A corda que vibra encanta as serpentes,
os seixos, os peixes, as sombras, as ervas.
Os ramos se curvam ouvindo-lhe os versos.
Abutres, leões aos seus pés adormecem.
Abrem-se prematuras flores, casulos
e cessam as águas seu fluxo eterno.
Canta ele agora do amor que tivera,
da viagem à Sombra, do instante infiel,
das cordas com que hoje suplica o inferno.
A voz, os dedos, já se lhe enfraquecem,
mas não pode parar sem que as horas recomecem
e as feras em círculo a seus pés despertem.

Como Orfeu, o poeta deve desbastar a densidade das trevas, descer ao Hades e nos oferendar a graça iluminada de sua lira. Cláudio Neves, em seu livro “De sombras e vilas” não soube fazer outra coisa a não ser tirar as mais belas notas de sua música. LOPES, Denilson. A delicadeza: Estética, experiência e paisagens. Brasília: UNB, 2008. NEVES, Cláudio. De sombras e vilas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

2 comentários:

  1. Esse é um tema que não cansa de me seduzir "a morte, como sangue,
    na sombra circula", esse verso é já é uma pequena obra-prima: uroboro.

    C Braz

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  2. Obrigado pelo comentário, Braz.´Digamos que o verso, menos que tudo isso, seja um acaso mais ou menos feliz - como de resto é sempre qualquer outro.

    Um abraço,
    Cláudio Neves

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